Houve um tempo em que a Rua dos Roques acordava e adormecia ao som do trem. O dia não começava com despertador. Começava com apito.
A vida seguia o compasso dos trilhos, e quem morava ali aprendia, ainda menino, que o tempo também podia ser ouvido.
Morar na Rua dos Roques era viver sob o compasso do trem.
O trem não era paisagem distante nem lembrança ocasional. Era presença. Entrava pela janela, atravessava as paredes, pousava no travesseiro e se alojava no ouvido da gente ainda criança.
Eu dormia com o som do trem se afastando e acordava com ele chegando.
À noite, o apito longo parecia embalar o sono, como se dissesse que o mundo seguia em movimento enquanto a casa descansava.
Pela manhã, o mesmo apito vinha mais curto, mais urgente, chamando para o dia, para a rua, para a vida que começava cedo.
Na infância, o trem não era metáfora. Era coisa concreta. Ferro, fumaça, ruído, vibração no chão. Quando passava, a Rua dos Roques parecia suspender a respiração. As conversas diminuíam, os passos desaceleravam, os olhos buscavam a linha férrea.
Era um acontecimento repetido, mas nunca banal.
O tempo, ali, não era medido por relógios. Era medido por passagens. Entre um trem e outro cabia uma manhã inteira de brincadeiras, um pedaço de tarde, um intervalo de silêncio.
A vida se organizava sem perceber, obedecendo a esse ritmo de chegadas e partidas.
Havia também um aprendizado silencioso.
O trem ensinava que tudo passa, que nada permanece no mesmo ponto por muito tempo.
Mesmo assim, para a criança que eu era, ele parecia eterno.
Sempre voltava. Sempre reaparecia no mesmo trilho, no mesmo horário aproximado, reafirmando uma sensação de permanência que só a maturidade aprende a questionar.
Hoje, quando penso naquele tempo, não lembro apenas do som. Lembro do modo como ele organizava o mundo.
O apito não anunciava só a máquina.
Anunciava a manhã, o descanso, a noite, a espera.
Era um marcador de tempo mais confiável que qualquer calendário.
A Rua dos Roques ficou no passado. O trem mudou de ritmo, mudou de rota. Hoje o trem não mais passa.
O apito silenciou na paisagem, mas não na memória.
Ainda hoje, quando o silêncio da madrugada se impõe, é como se ele voltasse, distante, lembrando que houve um tempo em que a infância dormia e acordava ao som dos trilhos.
E que esse som, mais do que barulho, era pertencimento.
José Tavares de Araújo Neto
