No sertão nordestino, um crime bárbaro abalou famílias e comunidades locais: o assassinato do Coronel José Fernandes Vieira, influente fazendeiro e político de Pombal, na Paraíba. O crime, ocorrido em 22 de abril de 1929, desencadeou uma perseguição implacável aos assassinos, que culminou em um sangrento confronto no Ceará.
Era filho do Coronel Antônio Fernandes de Freitas Lima e Rita Clementina de Freitas, e casou-se com a prima Maria Madalena Medeiros Fernandes (Dona Mariinha). A família Fernandes Freitas era influente na região, e o coronel Zé Fernandes era uma figura complexa e controvertida, com histórico de envolvimento em disputas políticas e violência no sertão paraibano.
Segundo consta no livro “Ulysses Liberato, um cangaceiro a serviço do major José Inácio do Barros”, ele e Argemiro Liberato de Alencar foram acusados de mandar assassinar desafetos na Fazenda Águas Belas (Pombal, 1918). Inicialmente condenados em primeira instância, os dois recorreram e foram absolvidos pelo Tribunal de Justiça, ficando as condenações restritas aos executores diretos do crime: o bando de Ulysses Liberato. Este grupo foi julgado à revelia, pois seus integrantes, incluindo Ulysses, não foram localizados para responder ao processo.
O coronel Zé Fernandes manteve uma controvertida amizade com o major José Inácio, proprietário da fazenda Barro, em Milagres (CE), tido como um dos grandes protetores de cangaceiros, assassinado em 1923. Essa amizade foi fortalecida por laços familiares, já que Amélia Braselina de Medeiros, esposa do major Zé Inácio, era prima do coronel Zé Fernandes e de sua esposa, Mariinha. Além disso, ambos foram apontados como autores intelectuais de assaltos a fazendeiros na região de Catolé do Rocha, em 1922, incluindo entre as vítimas o abastado coronel Valdivino Lobo, proprietário da Fazenda Dois Riachos.
Na manhã de 22 de abril de 1929, por volta das 6 horas, o coronel Zé Fernandes foi brutalmente assassinado no hotel do povoado Malta, município de Pombal. Ele havia acabado de tomar café e conversava tranquilamente com o proprietário do estabelecimento, aguardando uma condução para visitar suas fazendas. Sem qualquer discussão prévia ou provocação, foi alvejado pelos irmãos Cazuza Wanderley (21 anos) e Prudente Wanderley (18 anos), acompanhados de mais dois comparsas não identificados inicialmente.
Os disparos foram precisos e fatais: balas alojaram-se no coração e na aorta, causando morte imediata. Em um ato de ódio extremo, Cazuza continuou a descarregar seu revólver no corpo já sem vida da vítima, demonstrando uma brutalidade e falta de humanidade. Esse ato de violência excessiva chocou a comunidade local e reforçou a percepção de que o crime foi premeditado e motivado por um desejo de vingança.
O assassinato do coronel Zé Fernandes está ligado a uma disputa de herança envolvendo as propriedades deixadas por seu tio, Justino Alves Fernandes. Os irmãos Cazuza e Prudente Wanderley, autores do crime, alegavam ter direito à herança por sua mãe, Maria Fernandes Wanderley, ser filha de criação de Justino. No entanto, segundo o odontólogo, Antônio Fernandes, filho da vítima, o testamento de Justino beneficiava legalmente o coronel Zé Fernandes, e a disputa judicial não prosperou.
Dr. Antônio Fernandes disse a imprensa que o crime foi o desfecho de um ressentimento antigo e de um ato de ingratidão. O coronel havia doado dinheiro à família Wanderley meses antes do assassinato, mas isso não impediu que Cazuza Wanderley o matasse de forma brutal. O crime foi o clímax de rancores acumulados, alimentados pelo fracasso da ação judicial e pela influência do advogado José Gaudêncio.
O Dr. Antônio Fernandes acusou o advogado José Gaudêncio de ser o instigador do crime, alegando que ele havia realizado viagens com Cazuza Wanderley e fomentado planos criminosos. Além disso, os Wanderley já haviam cometido atos de sabotagem, como incendiar propriedades do coronel. A combinação desses fatores criou um cenário propício para o assassinato.
Os esforços iniciais da polícia paraibana, sob ordens do presidente João Pessoa, incluíram prisão preventiva e inquérito que apontava influência de terceiros, como o advogado José Gaudêncio. No entanto, os criminosos escaparam e penetraram no Rio Grande do Norte buscando refúgio, supostamente em busca de proteção do coronel Joaquim Saldanha (Quinca Saldanha) em Caraúbas.
A família do coronel Zé Fernandes contatou Quinca Saldanha, que confirmou a passagem dos criminosos por sua fazenda Amazonas, mas afirmou ter negado qualquer apoio e que eles seguiram para destinos desconhecidos. No entanto, quando o guia dos criminosos foi preso, foi encontrada em seu poder uma carta que mencionava o major Migas Veras, primo e cunhado de Quinca Saldanha, o que levantou suspeitas de que Quinca Saldanha possa ter auxiliado na fuga dos criminosos.
A perseguição ganhou ímpeto graças à imprensa. Uma entrevista do Dr. Antônio Fernandes publicada em “A Razão” em 22 de maio alertou o público. Cândido Gadelha, em Limoeiro (CE), leu o texto e suspeitou de três estranhos passando pela cidade em 24 de maio. As informações foram trocadas entre Cândido Gadelha e Antônio Fernandes para rastrear os suspeitos.
Um telegrama de Morada Nova e outro de Cândido Gadelha confirmaram que os irmãos Wanderley e seus cúmplices estavam escondidos na fazenda Passagem Funda, em Choró, propriedade de João Euzébio. O secretário de Polícia do Ceará, Dr. Mozart Catunda, implementou um plano de ação eficiente, enviando uma diligência a Quixadá sob o comando do inspetor Simão.
A missão militar foi incumbida ao famigerado tenente José Gonçalves Bezerra, conhecido por sua truculência e implacabilidade. O controvertido tenente Zé Gonçalves Bezerra, conhecido por sua truculência e implacabilidade, liderou um violento ataque à Fazenda Guaribas em 1927, resultando em mais de vinte mortes e destruição total.
Naquela ocasião, ele enganou os comandantes das forças volantes dos estados de Pernambuco e Paraíba, fazendo-os acreditar que estavam combatendo cangaceiros, quando, na verdade, o alvo era a propriedade de Francisco Pereira de Lucena (Chico Chicote). Segundo rumores correntes, o tenente Zé Bezerra teria sido cooptado financeiramente pelos irmãos Joaquim e Napoleão Amaro, inimigos figadais de Chico Chicote.
Zé Bezerra foi morto em 1937 em uma emboscada como represália por sua perseguição aos devotos do Beato José Lourenço. Ele foi definido pelo pesquisador Nertan Macedo como um dos maiores bandidos autoridades do Ceará.
Em perseguição aos assassinos do coronel Zé Fernandes, ele liderou um contingente de 25 praças da força policial que partiu em trem expresso às 18 horas com destino a Aracoiaba, onde chegaram às 20 horas e seguiriam a pé as quatro léguas restantes até Choró.
No dia 3 de junho de 1929, às 6 horas da manhã, a casa onde estavam Cazuza, Prudente, João Euzébio e seu filho foi cercada pela polícia. Segundo a versão oficial, após serem intimados a se render, os criminosos responderam com tiros. O tiroteio durou mais de sete horas, e a polícia recebeu reforços de 30 praças sob o comando do tenente Leite.
O resultado final foi a morte de três soldados (Manoel Nogueira da Silva, Manoel Lopes e José Pinto) e dois feridos graves (Anacleto Bezerra e Francisco Ferreira Maciel). Do lado dos criminosos, Cazuza foi morto, enquanto Prudente (ferido na cabeça), João Euzébio e seu filho (ferido na omoplata) conseguiram fugir.
Os corpos dos soldados chegaram a Fortaleza em 4 de junho, causando grande comoção, e o enterro, realizado no dia 5 de junho, contou com a presença de autoridades e honras militares
Dias depois dos violentos acontecimentos em Choró, João Euzébio, dono da propriedade que abrigara Cazuza Wanderley, decidiu entregar-se às autoridades, temendo represálias policiais. Sua rendição ocorreu de forma peculiar: ele fugiu para a Fazenda Trapiá, em Maranguape, buscando proteção com o coronel Manoel de Paula Cavalcante. O coronel o conduziu a Fortaleza, onde Euzébio obteve uma audiência com o Secretário de Segurança Pública, Dr. Mozart Catunda Gondim, que lhe garantiu segurança durante o depoimento. Em sua declaração, Euzébio negou qualquer participação ativa no tiroteio e foi devolvido a Aracoiaba sob escolta militar.
Os eventos sangrentos em Choró geraram um intenso debate público, com opiniões divididas sobre a ação policial. Vasco de Sousa, em um artigo no jornal A Razão, criticou a cobertura jornalística que glorificava a ação policial, questionando a narrativa de “bravura” dos soldados e apontando os excessos cometidos, como as marcas de violência extrema no corpo de Cazuza Wanderley. Ele argumentou que a brutalidade da repressão não se justificava, mesmo que os acusados fossem criminosos.
Em resposta, Antônio Fernandes de Medeiros, filho do coronel Zé Fernandes, escreveu uma carta ao jornal defendendo a ação policial. Ele afirmou que Cazuza Wanderley era um criminoso conhecido e que a resistência armada dos irmãos durante o cerco confirmava sua periculosidade. Fernandes via o desfecho como uma vitória da ordem sobre a barbárie.
O debate entre Vasco de Sousa e Antônio Fernandes revela as complexidades do caso. De um lado, a denúncia de violência estatal e a desconfiança sobre as motivações por trás da operação policial. Do outro, a defesa de uma ação necessária para conter criminosos perigosos. A controvérsia reflete as tensões entre lei, moral e poder no Brasil da Primeira República.
JOSÉ TAVARES DE ARAÚJO NETO