Nós perdoamos, mas não esquecemos.
Nelson Mandela
O mundo do trabalho no Brasil está historicamente marcado pela coerção e pela violência. Com mais de trezentos e oitenta anos de escravidão enraizados no desenvolvimento da nossa nação, o país carrega marcas profundas: atrocidades em diferentes níveis, praticadas por senhores, feitores e outros agentes do sistema escravista. A tortura de escravos foi parte integrante desse sistema de dominação. Homens e mulheres escravizados enfrentaram uma série inacreditável de violências diárias, na luta secular pela sobrevivência e pela liberdade.
Para começar, convém lembrar que o arcabouço jurídico do Brasil imperial já admitia distinções brutais entre livres e cativos. Por exemplo: o Código Criminal de 1830 (época de D. Pedro I) estabelecia, para cidadãos livres, dezenas de penas possíveis; para os escravizados, restavam basicamente três — morte, galés ou açoites. Ou seja: mesmo que cometessem o mesmo crime de um homem branco livre, o escravizado estava destinado a punições mais cruéis, desumanizadas, que tinham como finalidade não apenas punir, mas aterrorizar. Acho eu que desde aquele tempo vigora a máxima: “aos amigos os favores, aos inimigos os rigores da lei”.
Uma das imagens mais publicada nos tímidos livros didáticos, a “chibata” ou o açoite era amplamente usada para punir o que era considerado falta ou rebeldia dos escravizados. Ferimentos abertos, cicatrizes visíveis e dor permanente eram o resultado. Em muitos casos, ao castigo físico somava-se um “tempero” doloroso: sal, limão ou suco ácido (urina!) nas feridas para aumentar a dor e servir de aviso aos demais (esse tempero não está evidente no livro da quinta série!). Além disso, o açoite público, amarrado ao tronco ou outro dispositivo, era uma forma de espetáculo de terror para manter os escravizados sob controle coletivo.
Para não apenas punir, mas marcar: alguns senhores ou capatazes aplicavam mutilações — cortar orelha, arrancar dentes, quebrar ossos, queimar com ferro em brasa — com o objetivo de dar visibilidade à condição de escravo como “coisa” e aviso aos outros. Marcar no corpo, literalmente, por ferro quente ou cicatriz era uma forma de reafirmar: “este corpo não é meu, é do senhor; é objeto, não sujeito”. Esse senhor era o escravocrata e tudo era feito sem anestesia!
O que se vê é que a tortura e a punição não eram apenas consequências de desobediência, mas instrumentos centrais de manutenção de poder: o senhor precisava que o escravizado se acostumasse à ideia de que resistir era absurdo, que a fuga implicava sofrimento inimaginável e que a disciplina brutal era inevitável. A exposição pública ao castigo, o uso de correntes, a humilhação sistemática, tudo isso construía uma cultura do medo, que atravessou séculos.
No livro “Terror na Casa da Torre: Tortura de escravos na Bahia Colonial”, o historiador Luiz Mott (MOTT, 1998) revela uma denúncia encaminhada ao Tribunal do Santo Ofício em Lisboa, no fim do século XVIII, contra Garcia d’Ávila Pereira Aragão, um dos maiores proprietários de escravos da Bahia e que havia sido agraciado com a comenda de Cavaleiro da Ordem de Cristo. Ele, também, um dos maiores torturadores de escravizados. Nos pormenores da denúncia consta, como exemplo, o relato de uma escrava que levava “uma palmatória de pau pela cara e queixadas do rosto com a maior força”. Outras denúncias dão conta de uma escrava que tinha mechas de cabelo arrancadas de uma só vez com uma torquês de sapateiro; de um menino, com apenas 6 anos de idade, em que fora pingado cera derretida dentro da via retal; uma menina que fora obrigada a comer, via açoites, uma porção de doce fervendo; escravas que tinham suas partes íntimas penetradas com ventosas de algodão em chamas; entre tantas outras dentre as 47 denúnicas contra o dito cujo, que tinha preferência por aflingir crianças.
Olha o que acontece com quem desobedece e vejam o que pode acontecer a vocês! Com esse mote definimos o terror da escravização de humanos nas terras do Brasil. Essas violências formavam o cotidiano invisível da escravidão: não apenas o açoite, mas o humilhante, o íntimo, o que rasga os vínculos humanos. É capital que não esqueçamos o que se fez. Lembrar não é reviver a vingança, mas assumir a responsabilidade histórica. Nós perdoamos, mas não esquecemos.
Francisco Jarismar
Licenciado em História pela UFPB
Servidor Público Federal do IFPB
CONTATO: [email protected]
