No início da noite de 12 de outubro de 1927, Juca Mamede, cunhado de Chico Pereira, chegou à fazenda Pau Ferrado, provindo da cidade de Pombal, para onde havia ido resolver algumas coisas particulares. Encontravam-se na sala da casa da fazenda, dona Emília, sua filha Jarda, o genro Chico Pereira e seu cabra de confiança Manuel Mendes.
Juca se dirigiu ao seu cunhado e contou o que viu na cidade da seguinte forma;
– Chico, lhe dou um conselho: não durma hoje em casa. Está chegando tanto soldado a Pombal que faz medo. Perguntei a todo mundo e ninguém me deu notícia de barulho por este sertão que precise de tanta polícia. Só quem tem questão grande assim é você. A impressão que tenho é que vão cercar a casa hoje à noite.
Confiante, Chico Pereira contestou a possibilidade dele ser o alvo da força policial:
— Qual nada! Eu tenho garantias do Governo. Ando no meio da rua e não me prendem. Agora vêm me prender em casa?
Juca Mamede estava certo. Não foi naquela noite, mas na madrugada do dia seguinte. Pouco antes das quatro horas, o terreiro da casa foi ocupado por uma força policial. Alguém bateu na janela da frente e se identificou:
— Sou o sargento João Ferreira. Vim com o Tenente Manuel Benicio. O governo mandou dizer que o senhor se entregasse para responder júri.
Do interior da casa, ecoou a voz de Chico Pereira:
— Não me entrego. Quando o governo quiser que me Sue para júri mande um soldado só, com um bilhete. Mas assim, não.
E prosseguiu:
— D. Emília está pedindo para retirar a família.
O sargento autorizou a saída da família pela porta da cozinha. Entretanto quando foram a abrir a porta dos fundos para a saída da família, ouviu-se a voz do Cabo João Piaba:
— Por aqui ninguém sai.
Chico Pereira voltou à janela da frente e reclamou:
— Sargento, atrás não deixam sair.
— Então ninguém sai – respondeu o sargento.
A partir de então, iniciou-se um cerrado tiroteio.
A família se recolheu para a parte mais segura da casa, ficando na grande sala apenas Chico Pereira, Manuel Mendes e Jarda, que os ajudava no municionamento das armas.
“O sol subiu alto no céu: seis, sete, oito horas da manhã. E o mesmo ritmo de luta. Só que a munição de casa ia se escasseando. Manuel Mendes único cabra que com Chico lutava dentro de casa contra a polícia, agora cruzou os braços. Não havia mais bala. Jarda aflita via que a munição quase toda cabia na concha das mãos unidas. Chico propôs que o cabra saltasse no terreiro e fosse embora. Achou perigoso e não se atreveu” (F. Pereira Nobrega, 1960)
Em meio ao tiroteio, um soldado de nome Mauricio, com idade já avançada, inadvertidamente decidiu entrar na casa. Segue a narrativa do escritor e F. Pereira Nóbrega:
“Tão velho, tão cansado, achou contudo que estava mais perto das honras do que da morte.
Luminosa ideia lhe ia passando pela mente aturdida explosões. Colado o corpo ao chão, junto a calçada, contou os seis tiros que pela porta saíram.
— Enquanto Chico refaz a carga — imaginou ele — passará a atirar da janela, como costuma alternar.
Abandonou o fuzil. Os movimentos rápidos a se fazerem em segundos, com o punhal seriam mais fáceis. Levantou-se da trincheira natural, colocou o grande punhal nu entre os dentes trincados. As mãos livres elevaram o corpo senil sobre a calçada alta. Acobertado pela fumaça espessa, atirou-se de casa a dentro, pela porta aberta, agora de punhal na mão.
Ia matar Chico. Ia ganhar um galão.
Foi um engano fatal. Chico voltava inesperadamente porta. A primeira bala entrou no tórax do velho soldado. Tombou sobre a soleira da porta e se arrastou a um lado, pela calcada afora.
A soldadesca debandou um momento.
De fora, pediram um instante de trégua, mas passou rápido e a luta continuou.”
O velho soldado deu seu último suspiro nos braços do filho que também integrava a da força.
Praticamente sem munição, Chico Pereira gritou repetidas vezes pelo nome do Tenente Manuel Benicio, sem, obter respostas a não serem rajadas de balas. Ao que parece, o Delegado de Pombal não se fazia presente naquele momento.
Apesar do alto risco, a tentativa de furar o cerco era a única saída. Por sorte, alguns amigos da redondeza ensaiaram uma tímida reação contra a força, possibilitando assim a fuga dos dois sitiados:
“Sobrevieram tiros da mata sobre os militares. Tiros poucos, mas eficazes. Amigos da redondeza, furtivamente ajudavam Chico. Com isso a soldadesca novamente recuou, refugiando-se detrás da cozinha. E agora, com tamanho ímpeto que a cerca do jardim ficou por terra.
Chico bateu numa janela e gritou para os soldados:
– Esperem que vou saltar no terreiro.
Bateu noutra janela, depois noutra, sempre em pontos diversos. E saltou pela porta, atirando. Desapareceu na mata, acompanhado de uma chuva de balas.
Minutos depois era Manuel Mendes que saltava.”
Durante a fuga, Manuel Mendes foi alvejado em uma das pernas, mesmo assim conseguiu chegar aonde lhe esperava Chico Pereira, que o ajudou, carregando-o nas costas até um lugar seguro. O tiro sofrido por Manuel Mendes deixou-o coxo permanentemente.
Logo que a fuga foi consumada, o Tenente Manuel Benício chega ao local do confronto. Após ser informado da morte do soldado, o Delegado se dirigiu até o interior da residência, onde manteve confabulação com os familiares. Ao retornar, determinou que a força retornasse a cidade, transportando o corpo do companheiro em uma rede de dormir cedida por dona Emília.
O episódio ocorrido na fazenda Pau Ferrado foi notícia veiculadas nos principais jornais do País. Na edição do dia 24 de outubro, o “Diário da Noite” da cidade de São Paulo, veiculou a seguinte nota:
“Paraíba, 24 – Uma correspondência de Pombal informa que, no começo da semana passada, foi ali cercado por uma força de polícia o bandido Chico Pereira. Depois de violento tiroteio, o criminoso conseguiu romper o cerco e fugir. Morreu na luta um soldado de polícia.”
Poucos dias depois, precisamente na edição de 7 de novembro, este mesmo periódico voltou a reportar com maior detalhamento sobre o assunto, inclusive traçando um interessante perfil da personalidade de Chico Pereira:
“Paraíba, Outubro – Tem sempre algo de interessante o estudo da psicologia dos bandidos. Não nos propomos a fazê-lo aqui. Contudo queremos hoje destacar a personalidade estranha do cangaceiro Chico Pereira, agora em foco com o cerco que a polícia paraibana lhe pôs em Pau Ferrado, nas proximidades da cidade de Pombal, no alto sertão.
Chico Pereira é um admirador do Faroeste americano. Usa chapéu de abas largas, pistola a cinta, pesadas cartucheiras, lenço vermelho ao pescoço, tudo de mistura com o muito nortista punhal e bordadas alpercatas.
Monta admiravelmente e gosta das situações difíceis, parecendo até haver escolhido a vida do cangaço pelo prazer dos arriscados desportos.
Pertence a conhecida família sertaneja. É um tipo insinuante e galanteador, possuindo mesmo alguma Instrução.
Há três anos passados, num assomo de desmedida bravura, assaltou em pleno dia a grande cidade de Sousa, levando centenas de contos em dinheiro, joias e mercadorias.
Passaram-se os tempos e já ninguém se lembrava de Chico Pereira. A semana passada, porém, o Delegado de Pombal, Tenente Manuel Benicio, teve denúncia de que o famoso campeador das catingas estava homiziado bem perto da cidade, no lugar Pau Ferrado, acompanhado apenas por Manuel Mendes, seu companheiro de crimes. Era mais uma demonstração de sua doentia paixão pela luta.
Comandados por aquele oficial, nossos milicianos fizeram o cerco da casa onde eles se encontravam. Ambos dormiam. Despertados pela fuzilaria, reagiram logo vigorosamente.
O cerco foi se apertando. Pouco depois, os bandidos se eclipsaram …
O Delegado explica o ocorrido. Infelicidade. Da polícia, está claro.
Dois soldados se encontravam próximo a uma das portas da casa assediada. Em dado momento, um deles tombou fulminado com certeira bala no coração. O outro se manteve no arriscado posto por algum tempo. Seu fuzil (fuzil Mauser, dos mais modernos) “mentiu fogo” e, para não ter a mesma sorte de seu companheiro, o soldado recuou. Chico Pereira e seu colega de aventuras aproveitaram a oportunidade. Assim reza o comunicado oficial …”
José Tavares de Araújo Neto
CASA SEDE DO SÍTIO PAU FERRADO, NA QUAL CHICO PEREIRA FOI CERCADO.
CHICO PEREIRA JARDA NÓBREGA TENENTE MANUEL BENÍCIO