A sabedoria popular é algo muito interessante. O povo, principalmente o interiorano, nunca deixou de ter suas observações sobre as mais variadas coisas (e causos) do mundo. Com olhar aguçado, as pessoas comuns percebem o que de estranho há em figuras por vezes estranhas ou reconhecidamente folclóricas — e terminam criando frases e pensamentos que nos servem de verdadeiros ensinamentos.
Um dia desses, lá pras bandas do sertão, estava um grupo de amigos reunido. Conversa vai, conversa vem, Chico de Bila, ao contar um causo, fez menção ao denominado “goela”. Esse vocábulo, empregado na seara da malandragem, refere-se à conduta ardilosa daquelas pessoas que se aproveitam dos ingênuos, ou até mesmo do sofrimento de alguém, para se locupletar. Diz também respeito ao indivíduo que conta muita vantagem, pessoa gananciosa e sem escrúpulos.
Na conversa, o Chico, bradava: “Devemos ter muito cuidado com os goelas. Eles se dizem ‘amigos’, mas, na verdade, vivem é de olho na mulher da gente”. E continuou: “Sabia que temos muitos goelas rondando a gente? Olha, pessoal, um conhecido meu, Terto, faleceu e não é que logo em seguida um ‘amigo’ dele tratou de revelar sua face de goela?”.
Mestre Tico, de olhos arregalados, exclamou: “É, temos que ter cuidado. Os goelas têm cara de santo, mas são traquinas que só o diabo”. Chico, então, retrucou: “Quando Terto morreu, o goela chegou ao velório, chorou um bocado e, ao falar com a viúva (mulher nova, rica e bonita), ao pé do ouvido, baixinho, disse: ‘Meus sentimentos. Depois tenho algo muito importante para lhe dizer’. Aí, o goela saiu devagarzinho, deixando plantada enorme curiosidade no âmago da viúva”.
Na missa de sétimo dia, lá estava o goela, vestido de “amigo”. Logo tratou de repetir o choro, não mais com a mesma intensidade. Todavia, as lágrimas ainda lhe desceram pelo rosto. Aproximou-se da viúva e, ao cumprimentá-la, sussurrou no seu ouvido: “Renovo meus sentimentos. Eu era muito amigo do Terto. Olhe, não esqueça que depois tenho algo para lhe dizer. É muito importante”. E — continuou Chico — o goela saiu, deixando replantada a curiosidade no intimo da viúva.
Por isso mesmo é que Maria, a viúva, começou a não dormir. Passava as noites pensando no que o goela tinha de importante para lhe dizer. Na missa de trigésimo dia, a inquieta viúva buscava com o olhar saber se o goela estava na igreja. O cabra era astucioso e tratou de retardar sua chegada, justamente para que a viúva ficasse mais ansiosa. Já estava perto de acabar a missa quando ele apareceu. Introspectivo, fez cara de choro, mas não derramou lágrimas. A viúva também já não estava tão chorosa. Foi aí que ele chegou para Maria e disse: “Renovo meus sentimentos”. E, ao pé do ouvido, sussurrou: “Na missa de domingo, pretendo lhe dizer algo importante. Sente-se na penúltima fila e espere por mim”.
No dia aprazado, lá estava a viúva, no local e horário determinados. O goela chegou, sentou-se ao lado dela e, novamente a seu ouvido, exclamou: “Amo muito você. Quero terminar meus dias ao seu lado. Mas eu era muito amigo do Terto e não posso ir em frente com isto”. Então, o galanteador parte repentinamente, deixando para trás a viúva completamente atônita.
Passados alguns dias e sem tirar o goela da cabeça, a viúva resolveu procurá-lo. E se entregou a ele, passando a viver grande e sonhado amor. O tempo passou e o goela mostrou sua verdadeira face: deu fim a todo patrimônio deixado por Terto. Quando não mais havia dinheiro, nem mordomia, deixou na amargura a pobre Maria, que não mais se apresentava nem tão jovem, nem tão bonita.
Onaldo Queiroga
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