Eparrey, Iansã… Que a verdade venha como a tempestade.
Kaô Kabecilê, Xangô… Que a verdade venha e a sua justiça seja feita!
(Prece aos Orixás)
Foram quase quatrocentos anos de escravização no Brasil e os livros didáticos não contam a real história do negro em solo brasileiro. Não relatam dos seus heróis e heroínas, numa tentativa de depositar no esquecimento o tesouro das resistências. Contudo, sempre fomos maioria e a nossa verdade, aos poucos, vem à tona.
A história do Brasil colonial foi marcada por lutas, resistências e pela força de povos que se negaram a aceitar a escravidão como destino. Nesse contexto, a figura da princesa Aqualtune emerge como um símbolo de resistência, coragem e ancestralidade africana. Pouco mencionada nos registros oficiais, ela existiu e nós exigimos a representatividade do seu lugar na história. Uma mulher empurrada para o anonimato da história oficial, mas que é presente na memória oral e em tradições afro-brasileiras.
Aqualtune foi uma princesa do Reino do Congo, filha de um dos soberanos daquela região da África Central. Educada em estratégias militares e habilitada na organização de batalhas, comandou um exército de mais de dez mil guerreiros na famosa Batalha de Ambuíla, em 1665, quando seu povo enfrentou os colonizadores portugueses. A derrota desse combate resultou na sua captura, sendo ela trazida como escravizada para o Brasil, onde seu destino foi marcado pela opressão, mas também pela insurgência.
Em solo brasileiro, Aqualtune foi destinada inicialmente ao trabalho nos engenhos de Pernambuco, uma das regiões de maior exploração escravista da época. Em sua descrição para venda indicava que além de bela, saudável e jovem era “boa para gerar muitos filhos”. Seu destino: uma fazenda em Porto Calvo, onde hoje fica o estado de Alagoas. Ali, viveu violências terríveis. Contudo, seu espírito de líder, sua formação e a força de sua ancestralidade não a permitiram se conformar. Fugiu grávida e se uniu a outros 200 negros que também haviam escapado da escravidão. Foi recebida o maior e mais duradouro símbolo de resistência negra no Brasil colonial como a princesa que era, tornando-se uma das líderes do Quilombo dos Palmares (1597-1695). Ali, não apenas encontrou refúgio, mas também ajudou a organizar a vida coletiva, contribuindo para a estruturação de um espaço que reunia milhares de pessoas entre negros, indígenas e brancos pobres, em um modelo social alternativo à ordem colonial. Lá chegaram a habitar quase 20.000 pessoas.
Aqualtune foi mãe de importantes figuras da história palmarina, teria três filhos que se destacariam na luta contra a escravidão: Ganga Zumba e Gana, líderes no Quilombo dos Palmares; e Sabina, a mãe de Zumbi. Aqualtune é avó de Zumbi dos Palmares. Sua descendência tornou-se parte fundamental da liderança política e militar do quilombo. A trajetória dessa mulher demonstra como as mulheres negras foram protagonistas da resistência contra a escravidão, exercendo papéis de chefia, organização e preservação cultural. Sua memória, ainda que pouco registrada nos documentos oficiais, atravessa séculos e se perpetua como referência para os movimentos sociais contemporâneos, especialmente o movimento negro e feminista.
Assim, Aqualtune não é apenas uma personagem do passado, mas um marco de luta que ecoa até os dias de hoje. Ela representa a força das mulheres africanas escravizadas que, mesmo diante da violência colonial, não perderam a dignidade, a coragem e o espírito de liderança. Seu legado é também uma convocação à valorização da memória afro-brasileira e à continuidade da luta por igualdade racial, justiça social e reconhecimento histórico.
Ao celebrar Aqualtune, celebramos não apenas uma princesa e guerreira, mas uma das raízes mais profundas da liberdade no Brasil. A realeza aguerrida não morreu, se perpetuou no sangue e na memória de seus descendentes e, pela graça de Olorum, habita eternamente o Orum e o Ayé. Axé!
Francisco Jarismar
Licenciado em História pela UFPB
Servidor Público Federal do IFPB
CONTATO: [email protected]
