No sertão brasileiro das décadas de 1920 e 1930, a linha entre justiça e crime era tão tênue quanto o fio de um punhal. Nesse cenário de coronéis, cangaceiros e disputas sangrentas, a história de Sebastião “Sinhô” Salviano emerge como um retrato visceral de um Brasil marcado pela violência estrutural e pela complexa teia de lealdades que definiam o poder local. Sua trajetória, da participação no sangrento episódio da Tragédia de Guaribas (1927) à morte durante a Revolta de Princesa (1930), revela não apenas um homem em busca de vingança, mas também as entranhas de um sistema onde a lei era ditada pelo bacamarte.
O estopim para a tragédia de Guaribas foi o assassinato de João Salviano, parente de Sinhô, em 1925, seguido pela morte de José Franco, seu cunhado, em 1926, ambos crimes atribuídos a jagunços do truculento fazendeiro Francisco Pereira de Lucena (Chico Chicote), irmão do então prefeito de Brejo dos Santos Manuel Pereira de Lucena (Manuel Chicote).
Nos dois primeiros dias de fevereiro de 1927, a fazenda Guaribas tornou-se palco de um dos episódios mais brutais da história do Nordeste. Sob o pretexto de combater o bando de Lampião, tropas policiais do estado do Ceará, sob o comando do Tenente José Bezerra, uniram-se às forças volantes da Paraíba e de Pernambuco e cercaram a propriedade de Chico Chicote, fazendeiro acusado de proteger bandidos. O resultado foi um massacre de mais de 20 pessoas.
Chico Chicote, líder da resistência, foi morto após 31 horas de combate. Entre as vítimas estão incluídos Mané Caipora e Antônio Marrocos de Carvalho. Antes do cerco, Antônio Gomes Grangeiro e três companheiros foram degolados e incinerados pela polícia. Não há registro de baixas entre os atacantes.
Por trás da operação, porém, escondia-se uma vingança pessoal. Sinhô Salviano, cujo tio e cunhado haviam sido assassinados por jagunços de Chicote, articulou-se com membros da abastada família Amaro, inimigos do fazendeiro, para manipular as autoridades. Cartas forjadas, supostamente escritas por Lampião, serviram de justificativa para o ataque. A imprensa cearense denunciou a ação como um “crime de Estado”, enquanto o governo Paraíba defendia-a como “combate ao banditismo”. A verdade, como sempre no sertão, estava enterrada junto com os corpos.
Após o massacre, Salviano refugiou-se no povoado de Patos, em Princesa (PB), reduto de Marcolino Diniz, sobrinho do coronel José Pereira, figura central de uma rebelião que abalaria o Nordeste em 1930. A região era um caldeirão de tensões: coronéis desafiavam o governo estadual, ex-cangaceiros eram recrutados como soldados, e a população vivia sob o medo constante de emboscadas.
Na Revolta de Princesa, Salviano destacou-se como um dos braços armados do coronel José Pereira. Comandando homens em Santana dos Garrotes (PB), impediu eleições e manteve o controle territorial através de intimidação e violência. Sua atuação exemplificava a lógica perversa do sertão: quem tinha poder, ditava a lei.
Em março de 1930, tropas governistas invadiram o povoado de Patos, dinamitaram sua casa e levaram sua família como reféns. A resposta de Salviano foi rápida: reuniu seus homens e expulsou os invasores, consolidando-se como símbolo da resistência rebelde. Porém, em abril, durante o Cerco de Tavares — ponto estratégico para a defesa de Princesa —, Salviano foi morto em combate.
A trajetória de Sinhô Salviano não cabe em rótulos simplistas. Para uns, foi um vingador que desafiava a impunidade dos poderosos; para outros, um criminoso que usava aos poderosos como escudo. Sua história revela a intrincada relação entre coronelismo e cangaço, onde elites locais protegiam bandidos em troca de lealdade, e a violência era moeda de troca para manter o controle territorial.
Documentos da época — telegramas, reportagens e depoimentos — mostram como narrativas eram fabricadas para legitimar massacres. Cartas falsas, como as atribuídas a Lampião, eram armas tão letais quanto os rifles. Já os relatos orais, transmitidos por décadas, pintam um retrato mais humano de Salviano: um homem marcado por perdas familiares, transformado em instrumento de um sistema corrupto.
A saga de Sinhô Salviano é mais que uma história de sangue e balas. É um retrato do Brasil profundo, onde a justiça oficial falha em chegar e o poder é exercido na ponta do fuzil. A Tragédia de Guaribas e a Revolta de Princesa expõem as raízes de problemas ainda presentes: a concentração de terra, a violência rural e a politicagem que usa os pobres como peças em um jogo de xadrez sangrento.
José Tavares de Araújo Neto