O capitão Francisco de Oliveira Freitas, influente fazendeiro do município de Pombal, integrante do Partido Liberal, tinha com os irmãos Pedro e coronel João Dantas de Oliveira, do Partido Conservador, divergências que iam muito além da mera concepção ideológica. Aliás, a disputa pelo poder foi desde sempre o principal estopim que desencadeou grandes conflitos familiares nos sertões nordestinos.
No início da década de 1860, o capitão Francisco Freitas, na condição de delegado da cidade, formou uma milícia e implementou uma implacável perseguição a fim de recrutar compulsoriamente pessoas para Guerra do Paraguai, como ficou conhecido o conflito em que, por interesses políticos e econômicos, o Brasil se juntou a Argentina e ao Uruguai para promoverem um dos maiores genocídios da história contra o povo daquele promissor País.
Em regra, os filhos de pequenos agricultores e negros, foragidos ou alforriados, eram os potenciais alvos dessas perseguições, vistos que os poderosos, além de ofertar seus escravizados em idade útil, também faziam donativos financeiros ao governo, em troca de que o império dispensasse do dever cívico os seus filhos, familiares mais próximos e protegidos.
Diante da eminência de ser preso e enviado ao front da guerra que não lhe pertencia, Julião Ferreira de Sousa, alforriado, ex-escravizado de uma tia do capitão Francisco Freitas, decide se refugiar na vizinha comarca de Catolé do Rocha, fora da jurisdição do intrépido delegado de Pombal. Entretanto, o plano de Julião não obteve o êxito esperado. Avisado de sua presença, o delegado de Catolé do Rocha prendeu-o, encaminhou-o à cadeia de Pombal, de onde ele foi recolhido pela escolta da Guarda Nacional.
A relação entre o capitão Francisco Freitas e o coronel João Dantas de Oliveira, que nunca foi nenhum pouco amistosa, teve maior acirramento após o capitão invadir a propriedade do coronel. O fato se deu por conta de que o capitão era contra o namoro de uma de suas filhas com um jovem pertencente a uma família que tinha estreitas ligações políticas com o seu adversário e inimigo.
Diante desta dissenção, o jovem “roubou” a namorada e a deixou na fazenda São Benedito, propriedade do seu padrinho João Dantas de Oliveira, para que este providenciasse a celebração do matrimônio. Naquela época, essa era uma prática muito comum quando os pais, por algum motivo particular, insurgiam-se contra o desejo de união do casal enamorado. Ao tomar conhecimento do paradeiro da filha, o capitão Francisco Freitas, à frente de um grupo de homens fortemente armados, dirigiu-se até a fazenda São Benedito, resgatando sua filha, que, mesmo contra a vontade, teve que ceder a exigência do enfurecido pai.
O comandante João Dantas de Oliveira, que na ocasião da invasão não se encontrava na fazenda, ficou indignado quando soube que seu inimigo havia invadido sua propriedade, classificando aquela atitude como uma afronta imperdoável. Todos que conheciam o comandante sabia que a partir daquele momento o capitão Francisco Freitas tinha registrado, em caráter definitivo e irrevogável, o seu nome na caderneta de vingança do arrogante e prepotente comandante da Guarda Nacional.
Outro episódio envolvendo a autoridade do capitão Francisco Freitas, então delegado da cidade, foi protagonizado pelo irmão de João Dantas, o suplente de juiz municipal Pedro Dantas de Oliveira. O fato ocorreu em 1865, precisamente no dia 31 de maio, quando o juiz de direito, Dr. Manoel Tertuliano Thomaz Henrique, determinou que o delegado Francisco Freitas encaminhasse à sua casa o detento Manoel José do Nascimento, protegido de Pedro Dantas, que se encontrava recolhido a cadeia de Pombal, que assim como Julião Ferreira, havia sido preso “para recrutamento” e que, segundo o delegado, contra quem também havia culpa formada por ter ferido um soldado na ocasião de sua prisão.
O delegado encarregou a missão ao subdelegado, com a recomendação de que trouxesse o preso de volta a qualquer preço. Ao chegar ao local combinado, o subdelegado foi surpreendido com um habeas corpus do juiz, que se encontrava acompanhado do suplente Pedro Dantas, concedendo liberdade ao preso Manoel José do Nascimento. O subdelegado contestou, alegando que além da prisão por recrutamento, havia um termo de culpa formada contra o detento por agressão a autoridade, quando da sua prisão. O Juiz disse que tinha competência para tomar tal decisão.
O subdelegado mais uma vez contestou, alegando que iria levar o preso de volta a cadeia e qualquer maneira, conforme havia determinado o seu superior imediato. Foi então que Pedro Dantas, armado de cacete, disse em tom ameaçador que dali o recruta não saía de forma nenhuma. Sem melhor alternativa, o subdelegado voltou para a delegacia de mãos abanando e Pedro Dantas levou o preso Manoel José para a residência do coronel Candido José de Assis, que se encontrava ocupando inteiramente o cargo de comandante superior da Guarda Nacional, cuja titularidade era do seu irmão João Dantas de Oliveira, que se encontrava afastado, respondendo processo por atitudes não compatíveis com a função.
Pouco meses depois de ser conduzido pela escolta recrutadora, Julião Ferreira reaparece em Pombal, surpreendendo todos os que acreditavam que ele estivesse lutando, ou provavelmente morto, na Guerra do Paraguai. Conduzia o ex-escravizado um salvo-conduto da Guarda Nacional, no qual constava que ele havia sido dispensado por problema de saúde que o tornava inservível para o serviço militar. “Apesar de ter me livrado da guerra, eu nunca vou esquecer de quem me entregou a escolta. Só quem não tem como me pagar, a mim não deve nada”. Mais do que uma ameaça, as palavras de Julião, sobrecarregadas de mágoas, representavam uma premonição de que no contexto daquela história algo ainda estava para acontecer.
Julião foi em busca da proteção na casa do histórico inimigo capital do capitão Francisco de Oliveira, que desde sua prisão havia se tornado também seu grande inimigo. O comandante João Dantas de Oliveira viu na coragem e determinação de Julião a oportunidade de juntar a fome com a vontade de comer. “A vingança é um prato que se come frio”. O comandante não só deu guarida a Julião em sua fazenda São Benedito, como também ainda lhe presenteou com um imponente bacamarte e farta munição, para qualquer necessidade iminente, seja de defesa ou de ataque.
Em torno de 7 horas da noite do dia 23 de novembro de 1869, o capitão Francisco Freitas conversava descontraidamente com seu irmão no alpendre de sua casa na Fazenda Várzea Comprida, quando repentinamente o diálogo foi interrompido por um estampido de uma arma de fogo. Ouviu-se em seguida o barulho de passos apressados, depois o galope de um cavalo, que fugia com seu cavalheiro em meio a escuridão da noite.
Em sua preguiçosa, o capitão esbaldado em sangue pedia socorro, sem entender o que estava acontecendo. Em pouco tempo a residência foi enchendo de pessoas, primeiramente e sua filha acompanhada do genro, que moravam a pouca distância, vizinhos e amigos.
Durante toda a noite e madrugada adentro, foi intensa a movimentação da estrada que liga a cidade a Várzea Comprida, um percurso que corresponde a cerca de 7 léguas. O padre Álvaro Ferreira, pároco de Pombal, foi o primeiro chegar, avisado que foi por um emissário da filha do capitão, consternada pela gravidade dos ferimentos sofridos pelo pai, aguardava que líder espiritual chegasse a tempo de conceder-lhe a extrema-unção.
O Padre Álvaro Ferreira, apesar de primo das esposas dos irmãos Dantas, as irmãs Maria Severiana Barbara da Rocha e Joaquina Severiana Barbara da Rocha, tinha excelente relação com a família Oliveira Freitas. Ligado ao Partido Conservador, o mesmo dos Dantas, o padre foi eleito deputado provincial no biênio 1854/55, porém, após cumprir o mandato abandonou a política, insatisfeito com o rumo que o partido havia tomado, sob o controle dos coronéis João Dantas de Oliveira e Cândido José de Assis, ambos seus parentes por afinidade.
O genro do capitão foi incumbido de fazer ciente do sucedido ao juiz de direito da comarca, Dr. Joaquim Pires Gonçalves da Silva, que de pronto encaminhou ao local a força policial, sob o comando do sargento Leopoldino Alpiniano Virgulino Urtiga.
Os primeiros socorros indicavam que os ferimentos do capitão não tinham a gravidade que se imaginava inicialmente. Por milagre, sorte do capitão ou por inexperiência do criminoso, segundo dizia-se, o assassino havia carregado a arma com pouca pólvora, muito chumbo e uma bala. Nos ferimentos foram constatados, entre o baixo ventre e a cabeça, cerca de 65 caroços de chumbo, inclusive um que muito incomodava e mais inspirava cuidados, que se encontrava alojado abaixo do peito esquerdo. A bala e mais 31 caroços de chumbo milagrosamente desviaram-se e ficaram cravados na parede da casa.
Depois de confabular com a vítima e seus parentes, o sargento Leopoldino Urtiga juntou a força e se dirigiu à Fazenda São Benedito, onde após o cerco a casa do morador, deu ordem de prisão a Julião Ferreira, que atendeu sem nenhuma reação. Inicialmente, Julião negou qualquer participação no atentado. Porém, durante a revista da casa foi encontrada a arma do crime escondida em uma parede cuidadosamente condicionada com folhas de oiticica. Diante das evidencias o criminoso foi levada a cadeia da cidade.
Réu confesso, Julião Ferreira sempre negou a participação do comandante João Dantas no atentado contra o capitão Francisco Freitas. Foi a julgamento, condenado a 20 anos de cadeia por tentativa de homicídio, mas a prisão não o preocupava, pois tinha a garantia do todo poderoso coronel João Dantas de Oliveira que sua estadia na cadeia de Pombal seria breve, era só uma questão de oportunidade.
Seguramente por ter culpa no cartório e temer uma delação, o fato é que o comandante João Dantas de Oliveira, conforme havia prometido, usou de todos os recursos disponíveis para libertar o seu cúmplice Julião Ferreira. Na primeira tentativa, colocou uma pessoa para assumir a responsabilidade e inocentar Julião do crime; depois escreveu uma carta ao imperador D. Pedro II; e, por último, engendrou um dos fatos mais épicos da história do cangaço, que foi o ousado assalto à cadeia de Pombal feito por um grupo de cangaceiros sob o comando de Jesuíno Brilhante, na madrugado de 19 de fevereiro de 1874.
Mas aí é outra história que iremos contar em outra oportunidade.
José Tavares de Araújo Neto
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