
O plenário da Câmara dos Estados Unidos deverá votar na próxima quarta-feira os dois artigos de impeachment aprovados sexta-feira pela Comissão de Justiça, acusando o presidente Donald Trump de abuso de poder e obstrução do Congresso. Com maioria confortável de 235 dos 435 deputados, os democratas farão de Trump o terceiro presidente americano a sofrer impeachment, ao lado de Andrew Johnson (1868) e Bill Clinton (1998).
A palavra “impeachment” tem, nos Estados Unidos, um significado ligeiramente distinto do que atribuímos a ela no Brasil. Enquanto aqui corresponde à deposição do presidente, lá equivale à denúncia pela Câmara e exige apenas a aprovação pela maioria absoluta dos representantes. Trump deverá ser em seguida submetido ainda a um processo no Senado, comandado pelo presidente da Suprema Corte. Para a condenação, é necessário o voto de dois terços dos senadores.
Como o Partido Republicano detém 53 das 100 cadeiras no Senado, é extremamente improvável que Trump seja condenado. Como no caso de Clinton e como já aconteceu na Comissão de Justiça, o mais provável é que a votação corresponda à divisão partidária entre democratas e republicanos. A instituição criada para unir os partidos contra um mandatário que conspurcasse o cargo da Presidência acabará, mais uma vez, usada para fins político-eleitorais
Não significa que as acusações contra Trump sejam vazias. Ao reter US$ 391 milhões em ajuda militar aprovada à Ucrânia e acenar ao presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, com uma visita à Casa Branca em troca do “favor” de investigar o filho de seu rival Joe Biden, Trump usou o cargo para fins pessoais. Fora isso, desafiou intimações da Câmara por documentos e vetou testemunhos durante a investigação.
Em que pesem as evidências, a pressa dos democratas em levar o impeachment a cabo – ditada pelo calendário eleitoral – demonstra que o processo tem um fundo mais político que institucional. E nem assim tem resultado numa estratégia eficaz. Para garantir um julgamento mais veloz, antes das primárias que começam em fevereiro com as convenções partidárias em Iowa, eles restringiram as acusações contra Trump apenas ao episódio com o presidente ucraniano.
Decidiram não incluir uma acusação de suborno, ofensa prevista explicitamente como motivo para impeachment na Constituição, deixaram de lado as evidências recolhidas pela investigação da interferência russa nas eleições de 2016, os casos dos negócios de Trump beneficiados depois da posse e as suspeitas que pairam sobre sua situação fiscal. Em paralelo, Trump enfrentará na Suprema Corte pelo menos dois processos relativos a este último item, que testarão a independência do tribunal.
Em vez de um arco maior e mais consistente de acusações, os democratas preferiram partir para o enfrentamento rápido com os parlamentares republicanos. Estes se mantêm, na vasta maioria, fieis a Trump, ao contrário do que ocorreu em 1974, quando o escândalo de Watergate contribuiu para unir os dois grandes partidos contra o presidente Richard Nixon. Nixon preferiu renunciar antes do impeachment na Câmara e do julgamento no Senado, em que sua deposição era dada como inevitável.
Não apenas não há o menor sinal de que Trump tenha considerado ou vá considerar a possibilidade de renúncia, como nem o imbróglio ucraniano nem o processo de impeachment sequer abalaram sua situação eleitoral. A popularidade dele permanece constante, pouco abaixo de 42%. O apoio ao impeachment também segue inabalado, ao redor de 48% (44% são contra).
Os republicanos enxergam os fatos do caso ucraniano com benevolência. Não veem problema algum em Trump querer genuinamente investigar um rival e discordam que haja nexo necessário entre essa attitude e a retenção de ajuda à Ucrânia ou da visita de Zelensky à Casa Branca. Não houve, segundo essa interpretação, o “toma lá, dá cá”, essencial para comprovar a ofensa de Trump.
Convencer as vozes discordantes seria essencial para obter um consenso comparável ao que se formou contra Nixon, tanto no Congresso quanto entre os cidadãos. Em contraste, a estratégia de prosseguir com rapidez resultou até agora em ganho político nulo para os democratas.
Levou pelo menos quatro meses entre a recusa de Nixon em fornecer as gravações que o comprometeriam no Caso Watergate (em abril de 1974) e o momento em que sua deposição se tornou inevitável (em agosto), apoiada por algo como 70% da população. Nesse período, a Suprema Corte teve de se pronunciar sobre o assunto, e o depoimento de várias testemunhas, transmitido pela TV, erodiu a popularidade de Nixon.
Desta vez, os democratas decidiram não desafiar na Justiça as recusas de Trump em fornecer documentos, nem tentaram forçar o depoimento de outras testemunhas que poderiam comprometê-lo ainda mais. Fica a sensação de um processo pela metade, cujo resultado era conhecido desde o início e cujo efeito no cenário eleitoral será mínimo.
Fonte: G1