Ontem resolvi contar nos dedos (das mãos) o rol dos amigos, aqueles mais achegados e que, digamos, me suportam. Descobri que a estreita relação de amizade que mantenho, de fato, é com boa parte da fauna brasileira. Dentre os (poucos) amigos que arrumei entre os meus guardados se destacam roedores e aves, de um norte a outro, vai de Zé Preá a Chico Pavão. O primeiro, um sofrido tocador de sanfona, este último, uma figura difícil de se colecionar ou colar nalguma página do álbum da vida. Muito arisco e nada afeito a atracar muito tempo no mesmo porto, Pavão nasceu mesmo foi para voar; sem apego a lugares ou emoções mais contidas ou incontroladas. Chico era único em tudo o que fazia! Magro, longilíneo (um misto de Raimundo Fagner e Falcão), desengonçado no andar, poeta, bom de bola e de papo, habilidoso no carteado e um devedor contumaz. De suas tantas frases celebres, uma me vem sempre à mente: “o devedor é um artista, comprar fiado é uma arte”, altercava ele quando se via acuado com as cobranças.
Estudou pouco. Dizia que as letras lhe cansavam a vista e fadigava o juízo. Semi-analfabeto por definição e opção, compensou a falta do conhecimento dos livros com a esperteza dos dribles nos “beques” da vida. Percorria estas ruas de Pombal desenvolvendo a arte de viver sem muita pressa, sempre na malandragem e na boêmia, características quase natas que ele atribuía à mãe natureza. Aliás, a natureza só não lhe foi pródiga na compleição física. Era, no mais rasteiro dizer, uma criatura mal cortada! Descuido que os amigos logo lhe corrigiram, atribuindo o sobrenome de “Pavão”, ave de singular beleza.
Mas, como eu ia discorrendo, o Chico (veterano contador de histórias para credores menos avisados, já que os avisados viviam em seu encalço), cansado dos embates na terrinha onde nascera resolveu partir para colorir de poesia outras glebas, traçar versos na poeira do tempo, encurtar distâncias com o tilintar dos dedos e encantar moçoilas com o magnetismo de engolir cacos de vidros. Faquir de amenitudes e ilusões.
E lá se foi o Chico. Por muito tempo não se ouviu falar dele até que, vez por outra, surgia uma notícia, um paradeiro, uma referência de um poeta numa feira-livre, uma apresentação de um mágico de ilusões em alguma agência bancária ou a invasão de algum coração feminino mais desavisado. Prováveis pistas deixadas por Pavão. Verdade mesmo é que seu paradeiro foi tão presente quanto incerto. Era visto pelo mundo afora, ora em um cassino, ora em um cabaré ou botequim. Até o dia em que cismaram de noticiar as suas tantas mortes. – Chico Pavão morreu, diziam! Enterraram-no no Pará, gritava um. E assim se sucedia: um choro aqui, outro acolá, um enterro em Minas, outro em Belém, outro na Paraíba e onde mais se pudesse imaginar sepultar alguém por esse mundaréu afora. Mas sempre aparecia um caixeiro viajante, uma rapariga ou um credor para logo desmentir o passamento do Chico Pavão, dando como certo tê-lo visto em algum lugar desse mundão de meu Deus. Apagavam-se as velas, as lamentações e tudo voltava ao normal.
Mas, foram tantas as suas mortes e desmentidos, que por um longo tempo acreditei piamente que o Chico não morreria mais. A sua cota com o outro mundo já estava por demais encomendada e, diga-se de passagem, devidamente cumprida por antecipação: missas, ladainhas, velórios de corpo ausente, sepultamentos simbólicos, de tudo já se havia realizado, sempre sem a presença do De’cujus anfitrião, claro! Os amigos já lhe choraram o enterro dezenas de vezes, para em seguida, dezenas de vezes comemorarem sua ressurreição anunciada numa notícia de seu real paradeiro.
No somatório de suas tantas mortes meia dúzia de raparigas já haviam botado e tirado o luto por mais de oito vezes e com a mesma rapidez que derramaram as lágrimas, copiaram a alegria pelo insepulto.
Decididamente ele não morreria mais, acreditei. Chico Pavão não morre, deve estar encantado por aí zombando desse rebuliço todo.
Talvez estivesse ele até a construir uma nova frase de efeito: “morrer é uma arte”. É Chico, já dizia o poeta: “só se morre verdadeiramente no esquecimento”, assertiva que acreditara não se aplicar ao velho Pavão.
Trabalhei essa ideia durante longos anos, até o dia em que as notícias de sua morte foram amainando, amainando, sumindo a tal ponto de ninguém falar mais da suposta morte de Chico Pavão. E foi aí, somente aí que pude, enfim, compreender que ele, agora, de fato, morrera, atropelado e vitimado talvez pelo nosso próprio esquecimento.
Descanse em paz poeta!
Teófilo Júnior