
Os haitianos chegam em vans abarrotadas trazendo muitas malas. Mal desembarcam na beira da pista e os veículos já dão meia volta para depois regressarem com um novo grupo que é igualmente despejado na fronteira. É assim durante todo o dia.
Depois que descem das vans, os estrangeiros fazem fila para entrar no posto de imigração da Polícia Federal na fronteira brasileira com a Guiana, em Bonfim, no Norte de Roraima. Chegam assustados e falam muito pouco. A maioria está só de passagem, alguns pagando coiotes.
Em 16 de novembro, após passar por três países (República Dominicana, Panamá e Guiana), o haitiano Wesley Castelli cruzou a fronteira brasileira. Aos 27 anos, ele se via desempregado e sem perspectivas no seu país natal. Testemunhou miséria, fome, epidemias e catástrofes naturais – como o terremoto que em 2010 matou mais de 300 mil pessoas no Haiti.
Chegou numa das vans pela esburacada rodovia que desemboca em Bonfim, uma empoeirada cidade de 12 mil habitantes com IDH semelhante ao de países como Palestina e Vietnã. Menos de uma semana depois, o haitiano já desembarcava em Belo Horizonte (MG), seu destino final.
A história de Castelli resume a de outros 13.510 haitianos que também entraram legalmente no Brasil pela fronteira em Bonfim nos últimos 11 meses deste ano, segundo números da Polícia Federal. O número é 1.260% maior do que o registrado em todo o ano passado, quando foram 993. A maioria pede refúgio, mas não fica na região.
O mesmo caminho também já trouxe milhares de cubanos em busca de trabalho, dinheiro e liberdade que não encontram na ilha socialista. Segundo a PF, entre janeiro de 2018 e novembro de 2019, 31.685 imigrantes cubanos ingressaram legalmente pela fronteira de Bonfim, mas o número real pode ser bem maior.
“No ano passado detectamos muitos cubanos cruzando a fronteira da Guiana para o lado brasileiro de forma ilegal, alguns até pelo rio Tacutu, que marca os limites entre os dois países”, afirma ao G1 a cônsul da Guiana em Roraima, Shirley Melville. “No caso dos haitianos não temos relatos desse tipo”.
Em 2017, a polícia interceptou dois taxistas que levavam 14 cubanos pela BR-401, que liga o Bonfim à capital Boa Vista. Eles haviam burlado a fiscalização na fronteira e entrado ilegalmente no Brasil.
“Ouvimos fortes rumores sobre a atuação de coiotes que recebem os estrangeiros no aeroporto de Georgetown [capital da Guiana], e os levam para pegar ônibus com destino à fronteira”, relata a cônsul. “Em Lethem [última cidade guianense antes do Brasil] eles são recebidos por outras pessoas, que tem conexões com as de Georgetown”.
Em julho de 2018, a PF prendeu em Pacaraima, a 380 km de Bonfim, um casal que trazia imigrantes ilegais ao Brasil. Eles foram flagrados quando usavam passaportes venezuelanos falsos para atravessar dois cubanos de Santa Elena de Uairén, na Venezuela, à fronteiriça Pacaraima.
Os cubanos disseram à PF que deram US$ 10 mil aos coiotes. Eles usariam os documentos venezuelanos falsos para levá-los do Brasil até os Estados Unidos, passando pela fronteira do México.
A nova rota de Bonfim
Mais perto de Boa Vista (125 km) do que Pacaraima (215 km), por onde cruzam os venezuelanos, Bonfim, que até então só via o movimento inverso — o de centenas de turistas que atravessam até Lethem, na Guiana, para fazer compras — agora vira rota de um novo êxodo.
Venezuelanos, cubanos e haitianos são os estrangeiros que mais chegam pelas duas fronteiras terrestres do estado (Venezuela e Guiana).
Entre janeiro e setembro de 2019 (período até onde estão disponíveis os dados da PF de ingresso de venezuelanos por Pacaraima) 198.555 mil imigrantes vindos da Venezuela, Haiti e Cuba chegaram a Roraima. Desses, 175.484 mil (89%) eram venezuelanos, 12.243 mil (6%) cubanos e 10.828 mil (5%) haitianos.
Em 2018, dos 245.242 mil estrangeiros dessas três nacionalidades que chegaram ao estado, 227.438 mil (92%) eram venezuelanos, 16.811 mil (6%) eram cubanos e 993 (0,4%) haitianos.
A operação Acolhida, criada para atender os refugiados venezuelanos que chegam ao Brasil por Roraima, não tem haitianos e cubanos nos abrigos e nem os inclui em voos de interiorização, mas devido a essa numerosa chegada tem os ajudado a obter documentação no país.
Mas o que atrai esse novo fluxo pela fronteira brasileira em Roraima? “A Guiana não exige visto de entrada para haitianos e nem para os cubanos”, afirma a consul Shirley Melville. “Quando eles entram no país só precisam apresentar passaporte”.
Em 2017, a ONU estimou que entre 2010 e 2016 o Brasil teve 67.226 mil haitianos em seu território, sendo o país da América do Sul com o maior número de haitianos.
Pela via terrestre, os haitianos que nessa época (2010-2016) chegavam ao país cruzavam principalmente por Brasileia, no Acre, e em menor número por Tabatinga, no Amazonas.
Eles vinham do Peru, mas com o passar dos anos a rota se tornou menos atrativa — isso porque o Equador, por onde os haitianos chegavam ao Peru (e depois ao Brasil por Amazonas e Acre), passou a exigir vistos de entrada há cerca de um ano e meio, diz Marília Lima Pimentel Cotinguiba, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Rondônia (UFRO), que desde 2010 estuda a imigração haitiana.
“Essa exigência de visto no Equador criou uma barreira, e os haitianos que antes chegavam ao Brasil pela fronteira do Amazonas e Acre tiveram de buscar outros caminhos. Foi aí que a Guiana entrou na rota”.
Além da rota pela cidade de Bonfim, haitianos que viviam na Venezuela também têm chegado ao Brasil por Roraima em meio ao êxodo venezuelano que cruza a fronteira de Pacaraima, só que em número bem menor dos que os que atravessam pela Guiana.
Fonte: G1