Francisco Benigno de Sousa era um pouco mais velho do que eu, sendo filho de Salete de tia Nedina e de Benigno de tio Cândido, denotando caso de união entre primos, fato corriqueiro em um passado não muito distante na Família Benigno Cardoso, pois o enlace matrimonial dos seus pais revelou a permanência endogâmica enquanto herança dos velhos troncos sefaraditas, caracterizando tradição judaica o casamento entre membros da família.
Residimos cerca de dois anos na antiga e tradicional rua Benigno Ignácio Cardoso D’ Arão – ou rua de baixo – entre 1974 e 1976, época em que consolidou-se nossa amizade, a qual conservou-se forte e altiva até o trágico acontecimento que resultou em seu desencarne.
Obrigatoriamente, sigo para a casa de Salete, toda vez que estou em Pombal, para matar saudades e rever queridos familiares. Na rua de Baixo encontram-se fincadas minhas mais profundas raízes.
Chico era apaixonado pelas coisas do sertão, tendo auxiliado de forma estratosférica na ênfase à minha identidade sertaneja, no fomento à idéia de pertencimento ao semiárido, à civilização do couro e da seca.
A rua de baixo é anexa à área rural pombalense, localizada a poucos metros do curso do rio Piancó, verdadeiro tesouro para quem reverencia o sertão em suas belezas e manifestações culturais típicas da terra do sol.
Benigno e Salete dispunham de pequeno rebanho bovino, o qual constituía em inspiração para sentir-me verdadeiramente sertanejo, integrado às tradições da pecuária nordestina. Fazia questão de acompanhá-lo quando do recolhimento do gado na vazante de tio Cândido, nas tarefas árduas de buscar rês desgarrada que adentrava o capinzal de Delmiro Ignácio. O curral ficava na casa dos pais, onde se realizava a tiragem do leite das vacas.
Tenho fascínio incontrolável pelo leite e seus derivados, razão pela qual ficava atento a Chico, com habilidade ímpar, manipular as tetas das vacas. Copo imenso que Salete selecionou para eu beber leite enchia-se e esvaziava-se com uma rapidez impressionante.
Fazia questão de participar de todas as etapas do processo que assinala a prática criatória no semiárido, incluindo a alimentação dos animais de grande porte, geralmente à base de resíduo, não obstante os percalços das secas enfrentadas.
O rio Piancó era a principal diversão. Banhos e pescarias faziam parte do cotidiano feliz na rua de Baixo. Sobrinho-neto e filho de exímio pecador de nome Biró de Onofre, não havia mistério no que diz respeito à forma de melhor aproveitar as pescarias, divertindo-se e pecando peixes de várias espécies. Certa vez pescamos tantos peixes que tivemos que pedir para que tio Álvaro, que vinha da Outra Banda, entregasse-os a Salete, para que fritasse enquanto estávamos no rio Piancó. Quando chegávamos, estava àquela peixada frita pronta, a qual saciava nossa fome.
Incontáveis vezes descemos de câmara de ar até a Outra Banda, propriedade de nossa Bisavó Ana Benigno de Sousa, aproveitando para visitar parentes e amigos que residiam por lá, bem como nas redondezas.
As noites na rua de Baixo eram marcadas por verdadeiras manifestações da nossa riquíssima cultura popular, com dezenas de crianças e adultos brincando, divertindo-se da melhor forma possível, seja através de garrafões, esconde-esconde e outras artes lúdicas inventadas pelo incrível poder criativo dos moradores da rua de Baixo.
Eu, Chico e Aldinho não dispensávamos esses momentos sublimes que marcam indelevelmente a história de vida de qualquer pessoa com bom senso. Imitar trechos de novelas assistidas na extinta TV Tupi, também fazia parte dos programas noturnos verificados na rua de Baixo. Tenho gravado em minha memória Tana, primo legítimo, tio de Chico, irmão de Salete e demais filhos e filhas de tia Enedina e de tio Godofredo Bispo, imitando cena de novela exibida em horário nobre em que o autor Carlos Alberto Riccelli faia o papel do índio Aritana. Como ele é conhecido por Tana, havia identificação com o personagem.
Chico era parte integrante e indissociável da geografia humana de Pombal, e, em especial, da rua de Baixo, da rua Benigno Ignácio Cardoso D’ Arão, homenagem ao velho ourives de origem judaica que é o patriarca de inúmeros seres humanos pombalenses, bem como espalhados pelo País e pelo Mundo.
Chico se foi, deixando saudades infinitas, mas vamos nos lembrar dele sempre com muito carinho e amor, pois foi como uma pessoa boníssima que sua passagem neste plano se efetivou de forma proeminente.
Siga em paz, meu querido e inesquecível primo. Siga na Glória do Senhor!
José Romero Araújo Cardoso. Pombalense. Geógrafo. Escritor. Professor-Adjunto IV do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus Central, Mossoró/RN.